O diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), o diplomata brasileiro Roberto Azevêdo, diz que a pandemia de coronavírus pode levar os países à "tentação" de buscar autossuficiência em setores considerados essenciais em um primeiro momento. Depois, no entanto, ele diz que a redução das trocas internacionais não será vista como uma boa resposta.
"A pandemia deixará suas cicatrizes. Num primeiro momento, pode haver a tentação de se fechar. Alguns governos poderão buscar a autossuficiência em setores considerados essenciais. Mas logo ficará claro que essa não é uma resposta sustentável, poderia expor a economia a novos choques de oferta e de preço", disse, em entrevista à BBC News Brasil.
Devido à pandemia, a OMC prevê que o que o comércio mundial deve cair até 32% neste ano, dependendo da duração da pandemia e da efetividade das políticas adotadas.
O órgão, que tem entre seus propósitos atuar como mediador em negociações comerciais multilaterais e resolver disputas comerciais internacionais, vem sofrendo com bloqueios de nomeações e ameaças de corte de verbas e abandono por parte de Washington.
Questionado sobre as críticas do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, Azevêdo respondeu que é "legítimo o desejo de que a organização evolua".
"Desde que assumi como diretor-geral, antes mesmo da administração Trump, tenho defendido reformas na OMC. Acho legítimo o desejo de que a organização evolua. Ela precisa ser mais ágil e responsiva às necessidades dos membros e às profundas transformações por que passa a economia global. Dito isso, vale lembrar que esse processo já está em curso."
Azevêdo anunciou neste mês que deixará o cargo em 31 de agosto, quando completará sete anos no posto. A saída, no entanto, ocorrerá um ano antes da data prevista para o fim do segundo mandato do diplomata brasileiro como diretor-geral da OMC.
Leia, a seguir, a entrevista concedida por Azevêdo por escrito à BBC News Brasil:
BBC News Brasil - Com a pandemia de coronavírus, temos assistido a uma disputa por equipamentos e suprimentos médicos. Uma autoridade alemã chegou a acusar os Estados Unidos de pirataria moderna. A OMC vê algum risco nesse tipo de situação?
Roberto Azevêdo - Esta crise é antes de tudo uma crise de saúde pública, que está forçando os governos a tomarem medidas sem precedentes para proteger a vida de seus cidadãos. Dito isso, ainda que em um primeiro momento a introspecção seja natural, isso logo se mostra contraproducente. Nenhum país é autossuficiente na produção dos bens essenciais para o combate à pandemia. A integração e a cooperação internacional são a única resposta viável e sustentável. Quanto antes isso ficar claro, melhores nossas perspectivas nesse tipo de situação.
BBC News Brasil - A OMC divulgou que o comércio mundial deve cair até 32% neste ano devido ao coronavírus. O que há de relevante na maneira como essa queda se distribui em diferentes partes do mundo ou em diferentes setores da economia? Quem são os mais afetados?
Azevêdo - A queda de 32% corresponde às projeções em um cenário pessimista. No cenário otimista, a queda no comércio seria de 13%. Isso vai depender da duração da pandemia e da efetividade das políticas econômico-comerciais adotadas. Em todo caso, o impacto será fortemente sentido em todas as regiões.
As Américas do Norte e do Sul e a Europa deverão sofrer as maiores quedas. Os setores com cadeias de valor complexas, como produtos eletrônicos e automotivos, serão mais prejudicados. O comércio de serviços também será muito afetado, em especial os setores de turismo e de logística e transporte.
BBC News Brasil - Quando olhamos para o médio prazo, a crise gerada pela pandemia tende a favorecer o protecionismo ou o livre comércio internacional?
Azevêdo - A pandemia deixará suas cicatrizes. Num primeiro momento, pode haver a tentação de se fechar. Alguns governos poderão buscar a autossuficiência em setores considerados essenciais. Mas logo ficará claro que essa não é uma resposta sustentável; poderia expor a economia a novos choques de oferta e de preço. O comércio internacional é vital para garantir escala de produção e o abastecimento de bens essenciais, a preços acessíveis. E para isso, os mercados precisam estar abertos e conectados.
BBC News Brasil - Países como o Brasil têm como ver nesse cenário algum tipo de oportunidade? De quê?
Azevêdo - Toda crise gera oportunidades. Aqui não seria diferente. Em algumas áreas, inclusive, isso já começa a aparecer. Tomemos a economia digital, por exemplo. Alguns analistas avaliam que o Brasil avançou cinco anos em cinco semanas. Há também um enorme potencial para alavancar uma maior integração da economia brasileira no mercado mundial. Com a crise, empresas buscarão diversificar suas cadeias de produção e suprimento. O Brasil pode se colocar como alternativa. O país conta com um parque industrial e um agronegócio suficientemente sofisticados para isso. Mas é preciso se preparar para aproveitar a janela de oportunidade.
BBC News Brasil - O presidente dos EUA, Donald Trump, já vinha pressionando e criticando a OMC sob o argumento de que seria injusta com os EUA e que oferecia vantagens à China. O senhor considera legítima alguma dessas críticas? Existe uma oportunidade de transformação na OMC? Em que sentido?
Azevêdo - Desde que assumi como diretor-geral, antes mesmo da administração Trump, tenho defendido reformas na OMC. Acho legítimo o desejo de que a organização evolua. Ela precisa ser mais ágil e responsiva às necessidades dos membros e às profundas transformações por que passa a economia global. Dito isso, vale lembrar que esse processo já está em curso. Tem sido objeto de propostas, iniciativas e debates entre os membros.
Temos mesmo alguns frutos importantes como o Acordo de Facilitação de Comércio, o fim dos subsídios às exportações de produtos agrícolas, a expansão do Acordo sobre Tecnologia da Informação, as discussões e negociações de grupos de membros sobre comércio eletrônico, facilitação do investimento, regulação doméstica e serviços, e micro, pequenas e médias empresas. E há muitos outros temas sobre a mesa. Precisamos seguir avançando.
BBC News Brasil - Especialistas evidenciam os benefícios trazidos pela globalização, mas alguns apontam que ela é responsável por disseminar crises com maior velocidade - como nesta pandemia, pela interligação entre os países. O sr. acha que o modelo atual deve ser revisto para incorporar elementos de proteção que poderiam ser acionados no eventos de nova crise? Quais elementos seriam esses?
Azevêdo -O principal elemento que necessita ser aprimorado é a coordenação. Desafios globais exigem soluções globais, coordenadas. Os fundamentos econômicos que levaram à globalização das cadeias produtivas e de abastecimento não mudaram. A autossuficiência, quando viável, tem um custo enorme para a sociedade. Novas crises virão. Precisamos nos equipar com instrumentos de concertação objetivos e pragmáticos, que nos permitam respostas ágeis, automáticas e eficazes. É com cooperação e solidariedade que melhoraremos nossas perspectivas em crises como esta.
BBC News Brasil - Muitos têm dito que a recessão que o mundo enfrentará só encontra paralelo em magnitude no que ocorreu na Grande Depressão. Que lições a OMC pode tirar do que ocorreu antes e depois da Grande Depressão que talvez sejam relevantes hoje no pensamento em torno da recuperação global? Quais devem ser os papéis do Estado e da iniciativa privada nesse processo?
Azevêdo - O choque econômico causado pela pandemia do covid-19 convida, realmente, a comparações com crises anteriores, como a Grande Depressão dos anos 1930. Mas se essas crises são semelhantes em certos aspectos, elas também são muito diferentes em outros.
A crise atual, por exemplo, não decorre de desalinhamentos ou vulnerabilidades nos fundamentos - ou no motor - da economia global. Ela é, na verdade, fruto de um corte repentino da gasolina que alimenta esse motor. Enfrentamos choques de ofertas e demanda, mas o motor econômico estava funcionando razoavelmente bem.
Dois fatores determinarão a velocidade e o dinamismo da recuperação aqui. O primeiro, é o tempo que esse motor ficará sem gasolina, ou seja, o tempo que durará essa pandemia. O segundo são as políticas de estímulo econômico e comercial adotadas pelos governos - em casa e coletivamente. E, sobre isso, aprendemos no passado sobre a importância de que essas políticas sejam concertadas e apontem na mesma direção. A inciativa privada certamente precisa participar desse debate. Os empresários estão bem posicionados para apontar gargalos, indicar rupturas nas cadeias e propor soluções.
BBC News Brasil - O sr. disse que a decisão de deixar o cargo um ano antes do previsto é pessoal, mas mencionou que ela atende aos interesses da OMC. Quanto os bloqueios de nomeações e ameaças de corte de verbas à organização pesaram na sua decisão?
Azevêdo - Minha decisão levou em consideração uma série de variáveis. Não é uma reflexão trivial. Foi uma decisão pessoal, discutida com minha família, e que, a meu ver, serve aos interesses sistêmicos da organização.
Vivemos um momento decisivo na OMC. A Organização precisa se modernizar e estar apta para responder às demandas e aos desafios do novo modelo econômico que se desenha. E agora, as consequências dessas mudanças se tornam ainda mais complexas com o impacto socioeconômico da pandemia.
Um dos marcos críticos nesse processo de renovação da OMC é a próxima conferência ministerial da organização - inicialmente prevista para junho agora, mas postergada provavelmente para meados de 2021. Se eu continuasse no cargo, o processo para escolha do próximo diretor-geral coincidiria com a preparação da ministerial - certamente sufocando os avanços necessários. Com a minha saída, o sistema poderá começar 2021 numa nova página, conduzida por um novo líder - que terá a chance de preparar uma boa ministerial. Então, na minha avaliação, o melhor a fazer era fechar esse ciclo importante, onde plantamos as sementes para a OMC 2.0, abrindo o caminho para o futuro.
BBC News Brasil - Quais são os planos profissionais do sr. a partir de setembro, quando terá deixado a OMC?
Azevêdo - Ainda não sei ao certo o que farei. Sei o que não está nos meus planos imediatos, como, por exemplo, pretensões políticas. Estou pronto para novos projetos e desafios. Veremos.